1 de junho de 2013

Daniel Matador: Sobrenatural de Almeida


“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”.
                                          Nelson Rodrigues


Caros

Uma das coisas que mais adoro na vida é pesquisar sobre história do futebol. E por história entenda-se não apenas os números frios, mas também tudo aquilo que se esconde por trás das estatísticas. As vidas que são influenciadas pelo mais apaixonante dos esportes. E um dos escritores que mais soube decifrar a alma do futebol foi Nelson Rodrigues. Ele mesmo, o autor de tantos textos e peças polêmicas. O mesmo que criou obras como “A vida como ela é” e “Elas gostam de apanhar” também gerou odes como “À sombra das chuteiras imortais” e “A pátria em chuteiras”. Poucos souberam captar tão bem a essência do esporte bretão como Nelson Rodrigues. Era torcedor do Fluminense e criou um personagem chamado Sobrenatural de Almeida. Ele era um fantasma responsável por todos os gols improváveis que ocorriam no futebol, bem como pelos lances que decidiam uma partida de forma inexplicável (quase sempre contra seu time de coração). Em um de seus inúmeros contos, denominado “O divino delinquente”, Nelson cita algo que poucos, incrivelmente ainda em nossos dias, parecem não dar-se conta: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural. Eu diria ainda ao ilustre confrade o seguinte: em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”.
Já há algum tempo o Grêmio tem sofrido com a presença do personagem de Nelson, o qual parece que tem abancado-se sem disposição para ir embora. São gols tomados por times em pior condição, partidas perdidas para equipes com muito menos tradição, séries de penalidades máximas com reviravoltas em contrário e até jogadores que notadamente possuem qualidade não produzindo aquilo que deles se espera. E todo mundo, extraordinariamente, conhece as razões para tal. A culpa é do treinador, é dos jogadores, é do preparador físico, é da nutricionista, do vice de futebol, do empresário, do presidente e até da mãe do Badanha. As soluções também pululam mais que propostas do exterior pra centroavante caneludo. É só trocar o técnico, basta contratar o jogador X que custa pouco e é craque, tem que usar a gurizada da base, é necessário trazer jogadores com experiência, tem que trocar a gestão, tem que mandar a mãe do Badanha pro Afeganistão. É tudo tão óbvio, como é que não enxergam?
Justamente por conta disso que poucos são os clubes campeões. Porque a dosagem do Sobrenatural de Almeida, por mais que não se queira aceitar, é enorme. Como explicar que há poucos anos atrás um time capenga como o do Flamengo, com o Adriano de centroavante resolvendo jogar e na bagunça já lendária que o acompanha, pudesse ser campeão brasileiro? Como imaginar que o Palmeiras do ano passado, com um time que chorava de ruim, comandado por um técnico que muitos já tachavam como superado, pudesse levantar a taça da Copa do Brasil? Se algum mané vier aqui dizer que foi planejamento, favor entrar na fila para as chibatadas. Contam-se nos dedos os clubes brasileiros e até mesmo mundiais que têm planejamento real e principalmente conseguem conduzi-lo sem grandes atropelos. Além do próprio futebol, há uma série de outros eventos paralelos, aí entrando desde a cachaçada tomada pelo atacante na véspera do jogo até a amarração do contrato de uma jovem promessa. Tantas são as variáveis que a chance de todas unirem-se de forma a levar uma equipe às conquistas é quase tão grande quanto ganhar na mega-sena.
“Ah, Matador, mas e o tal livro do cara do Barcelona, que diz que a bola não entra por acaso?” Ninguém está dizendo que os clubes não devem planejar-se. Ao contrário, o planejamento constrói a base necessária para que a dependência do Sobrenatural de Almeida seja cada vez menor. Mas é muita ingenuidade achar que basta planejar que o sucesso está garantido. Pergunte para qualquer vendedor, cuja empresa teve algum produto encalhado e que virou um fracasso de vendas, se durante o lançamento todos não achavam que seria um sucesso, justamente porque foi feito um planejamento bem feito? Infelizmente os percalços acontecem e a capacidade de reinventar as estratégias do clube é que poderá auxiliar na reconquista das glórias.
O Grêmio encontra-se em uma fase onde muita coisa necessita ser sedimentada, desde a parte administrativa até a política, passando invariavelmente pelo futebol. A torcida, naturalmente, quer saber apenas do resultado de campo. Se o time for campeão, que se explodam os balancetes! Se a taça for erguida, para o inferno com o fluxo de caixa! Se a faixa for colocada no peito, podem enfiar os contratos de patrocínio lá naquele lugar! Só que os administradores dos clubes, invariavelmente, também necessitam arrumar a casa, na grande maioria das vezes. E principalmente preparar o terreno para que haja continuidade que venha a garantir a perenidade das conquistas de campo. Ao menos os administradores competentes assim pensam e agem. A torcida, como não poderia deixar de ser, por vezes age como o pior tipo de cego, citado por Nelson Rodrigues. O tipo que só vê a bola. Aquele que já quer mandar embora o centroavante que perdeu o gol. O que já quer trocar meio time porque não goleou uma equipe mais fraca. Muita calma nessa hora.
Neste final de semana o Grêmio tem mais uma importante partida pelo campeonato brasileiro. Como de praxe, é dever da torcida tricolor apoiar o time. Esta mesma torcida que mostra como se lota um estádio na Serra Gaúcha, mesmo sem promoção de ingressos. Pegar uma equipe desfalcada do melhor jogador em atividade no país e que na véspera teve seu treinador demitido poderia ser um prato cheiro para a afirmação de um time que necessita de bons resultados. Entretanto, o futebol não é uma ciência exata. Por vezes, detalhes não planejados decidem uma partida e destinos. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana.
Saudações Imortais