5 de setembro de 2014

A sanha punitivista e a estigmatização gremista: quem nos salvará da bondade dos bons?



Li este texto e pedi licença para postar. Transcende o futebol e fará refletir aqueles que ainda conseguem fazê-lo.
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Por Salah H. Khaled Jr.


Sei que não devia escrever sobre isso. Algo me diz que me arrependerei. Quando os alunos de Direito Penal pediram ontem – no calor do momento – que eu dissesse algo sobre o caso, já o fiz com alguma relutância. Se me permitem, vou divagar. Não seguirei o formato habitual dos textos em parceria com o amigo Alexandre Morais da Rosa. Não proponho aqui um texto acadêmico de qualquer ordem. É quase que uma manifestação de pesar.
Sim, sou (ou em certo sentido fui; mais a seguir) gremista. Mas confesso que me afastei do clube nos últimos anos. Gradativamente me desidentifiquei desde que abandonamos o Olímpico. Sinto que perdemos parte significativa de nossa história. De uma história que vivi e respirei durante boa parte da minha vida. Infelizmente esse processo de afastamento se aprofundou ainda mais recentemente e isso não tem relação apenas com a falta de títulos. Não nego que parte da torcida tem se comportado de forma desprezível. Eu – como a imensa maioria dos gremistas – particularmente não tenho o menor desejo de ser identificado com uma torcida que debocha da morte de um grande jogador do Inter quando é recebida no Beira-Rio, ou que vomita impropérios anacrônicos em pleno século XXI (o conceito de raça pertence ao século XIX, simplesmente não faz sentido pensar assim). É evidente que não há justificativa para esse comportamento. Não há – ou não deveria haver – mais espaço para manifestações de desprezo ao outro no contexto político de um Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, o que está sendo desconsiderado por muitos – e que deveria ser óbvio – é que a expressão “torcida” designa um objeto complexo e multifacetado, que não se restringe aos esquemas explicativos grosseiros que estão sendo reproduzidos ad nauseam pelo país afora. A “coisa” está sendo nomeada como se fosse uma só, enquanto são várias. Essa minoria barulhenta e ruidosa não se confunde com a torcida do Grêmio. Grosseiramente dizer que o Grêmio é um clube racista que tem uma torcida racista é de uma impropriedade absoluta. Dizer que esse clube racista e essa torcida racista devem ser punidos exemplarmente é de uma irresponsabilidade ímpar. Isso é um conhecimento (ou desconhecimento) construído como violência e que produz e reproduz violência, ainda que simbólica.
De forma bem clara: tenho lido muita bobagem sobre esse assunto desde ontem. Mais bobagem do que é possível suportar, francamente. E o mais triste é que muitas pessoas que respeito estão se comportando de forma que a meu ver (e nada mais que isso sustento aqui: é apenas meu horizonte compreensivo) é absolutamente contraditória com a postura que adotam em outras circunstâncias. O episódio parece ter provocado uma infantilização gigantesca. Referenciais adotados em outras situações simplesmente estão sendo desconsiderados. É quase que uma leitura à la carte do mundo. É claro que aqui provoco muitos amigos e colegas, ainda que virtuais. O facebook se tornou local privilegiado de proliferação da barbárie. O feed de notícias chega a causas arrepios. Falo aqui de pessoas que escrevem, vivem e trabalham no universo das ciências criminais. Pessoas formadas em Direito. É a elas que me dirijo com essa provocação: com um paralelo que para muitos soará impróprio, mas que penso ser inteiramente justificado dadas as presentes circunstâncias.
Sim, meus amigos. É triste dizer isso, mas a sanha punitivista está dentro de vocês, assim como o ranço inquisitório. E a atribuição da etiqueta. Com que facilidade estigmatizam um clube e uma torcida inteira com base em atitudes isoladas de alguns torcedores. Com que facilidade aplaudem um “Tribunal” criticado duramente em outras oportunidades e louvam um julgador que aparentemente prega moral de cuecas. Estamos diante de mais uma peripécia protagonizada pela “justiça” desportiva do Brasil. E surpreendentemente, uma peripécia comemorada por inúmeros atores jurídicos.
Contradições afloram de forma irrefletida por todos os lados: muitos pensam que a utilização da menina como bode expiatório é inaceitável, mas ao mesmo tempo pensam que é desejável que o clube (e por extensão sua torcida, que não compactua com o discurso racista) seja punido de forma implacável. O cenário é aterrador. De um lado, a satanização midiática da menina provocou dano irreparável ao seu convívio social: seja bem-vinda ao universo instantâneo da transformação em pária, a que tantos subscrevem. De outro lado, um patrimônio e uma história são jogados na lama, como se nada representasse um clube ao qual estão ligadas por vínculos afetivos milhões de pessoas, que não tiveram a menor relação com os tristes fatos em questão.
Não estou de modo algum relativizando a questão ou minimizando a gravidade dos fatos. Pelo contrário: é justamente contra a simplificação da questão que me insurjo. Diante de um problema complexo como o racismo, causa desgosto perceber o quanto as pessoas depositam crédito na capacidade da punição para promover mudanças de ordem cultural, como se ela fosse um meio aceitável para a formação dos nossos valores mais íntimos! Também causa espanto perceber que irresponsavelmente estão reproduzindo com imensa facilidade os esqueletos metafísicos da prevenção geral: sim, vamos punir, porque punindo estamos mandando uma mensagem clara de intimidação.
Prevenção geral positiva e negativa se encontram em um coito incestuoso que anuncia o caminho para a terra prometida. A cereja no bolo é a concretização da sanha punitivista com a exemplaridade do ponto de aplicação da pena: devemos também punir os infratores de forma “exemplar” (e aparentemente o “dono da festa” também, afinal ele é responsável por “tudo” que acontece lá) para garantir essa desejável repreensão. Não interessa de modo algum que a “pena” ultrapasse completamente a pessoa do responsável, ou que critérios estranhos à prática do “fato” em questão façam parte do nosso desejo de punição. Vale o exemplo, acima de tudo.
Tudo isso soa tristemente familiar.
Não se promove mudanças de ordem cultural com castigo. O problema do racismo é endêmico e constitutivo da formação da identidade brasileira.[1] Está arraigado e é muito, muito, profundo. Não se restringe ao Rio Grande do Sul (que já elegeu um governador negro) e muito menos à torcida do Grêmio, que já aplaudiu inúmeros jogadores negros desde a década de 50. O Grêmio é muito mais do que o racismo é o racismo é muito mais do que o Grêmio, se é que me faço entender. A questão é complexa e multifacetada e deve abranger outros tipos de discriminação, como a de gênero e identidade sexual, que como todos sabem, são comuns em todos os recantos do país. O Grêmio de algum modo faz inclusive parte dessa história de luta contra a discriminação: vide a Coligay e os deboches que até hoje motiva por parte de colorados preconceituosos. Preconceito é preconceito, não interessa de que ordem seja. Sem falar na questão da violência, que suscitaria infinitos debates.
Sinceramente gostaria de acreditar que a resolução do caso pudesse ter o condão de promover o efeito desejado: que o racismo fosse erradicado não só dos estádios, mas também da nossa própria mentalidade retrógrada. A exclusão do Grêmio da Copa do Brasil seria um preço pequeno a pagar. Creio inclusive que a maioria dos gremistas concordaria e iria para o altar alegremente, como cordeiro imolado para o sacrifício. Eu iria. Você não iria? Mas dificilmente me parece que será esse o caso. O problema é de outra ordem. Punição não é varinha mágica. Não faz com que o preconceito desapareça.
Mas apesar disso, comemorar a punição e atribuir efeitos que ela não pode alcançar na realidade concreta virou uma epidemia. O pânico moral transbordou completamente, com resultados desastrosos. Quando falo em pânico moral me refiro a um medo irracional, que desencadeia reações desastradas e punitivistas, igualando o não-igual e punindo a todos com severidade irracional, supostamente sob pretexto de promoção de ditos milagres.
Que toda essa confusão sirva ao menos para motivar um debate sério. É o que se espera para além dos devaneios daqueles que adaptam o seu pensamento às circunstâncias e dos empresários morais da mídia, versados como são na instalação satisfatória do referido pânico moral.
E quanto ao Grêmio? Já dizia Nietzsche que tudo que não nos mata nos fortalece. A verdade é que a última década foi muito triste para clube. Não paramos de acumular cicatrizes. Que essa seja a derradeira e a que a partir daí sirva de lição. De fato, houve tolerância por muito tempo com uma minoria ruidosa dotada de grande visibilidade e agora o clube e sua torcida pagam o preço. Resta saber qual será o tratamento reservado para manifestações análogas que inevitavelmente ocorrerão em outros estádios do país. O ódio ao negro, à mulher, ao homossexual não conhece fronteiras. Precisamos lutar contra o ódio, mas sem acreditar em milagres e sem promover ainda mais injustiça sob pretexto de combater a injustiça. Como disse Agostinho Ramalho Marques Neto, quem nos salva da bondade dos bons quando isso acontece? Não podemos contar com o Chapolim. Afinal, ele é colorado.

Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor adjunto de Direito penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.  Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013.
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Original em
http://justificando.com/2014/09/04/sanha-punitivista-e-estigmatizacao-gremista-quem-nos-salvara-da-bondade-dos-bons/